Realidade
Enfrentar rodovias e o perigo: a rotina de corredores longe das áreas nobres
Atleta amador morreu atropelado na BR-101, em São Gonçalo

Correr na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul do Rio, ou no calçadão de Icaraí, em Niterói, é rotina para quem tem acesso à estrutura. Já correr no acostamento de uma rodovia movimentada é a única opção para muitos atletas que moram longe das áreas nobres. Foi nesse cenário que Lucas Celestino de Oliveira, de 27 anos, perdeu a vida.
O operador de estacionamento e corredor amador saiu para correr na manhã da última terça-feira (8), em São Gonçalo, e não voltou para casa. Seu corpo foi encontrado no dia seguinte, no km 309 da BR-101 (Niterói-Manilha), no bairro Porto do Rosa. Segundo a investigação, ele teria sido atropelado enquanto treinava. O motorista envolvido no acidente ainda não foi identificado.
A morte de Lucas escancara o contraste entre os espaços destinados à corrida em duas realidades. Enquanto corredores das zonas mais valorizadas contam com pistas sinalizadas, policiamento e iluminação adequada, atletas de bairros periféricos dividem espaço com ônibus, caminhões e carros em vias de risco.
Quem conhece bem essa realidade é o analista químico Ygor Caldas, de 26 anos, amigo de Lucas e morador do Jardim Catarina, também em São Gonçalo. Corredor há mais de 10 anos, ele diz que a falta de locais seguros empurra os atletas da região para as rodovias.
Ultimamente, a corrida tem sido uma válvula de escape, não só para a saúde física, mas também para a saúde mental. Com o aumento do número de praticantes, o espaço virou um problema. Sem alternativa, muita gente acaba treinando na rua mesmo, ao lado de carros
Ele conta que perdeu o amigo de forma “covarde e cruel” e cobra a criação de áreas adequadas para a prática esportiva no município.
“Um espaço apropriado ajudaria tanto quem corre quanto os motoristas, porque tiraria as pessoas das ruas. Hoje temos a Fazenda do Colubandê, que está em estado deplorável, e o parque que está sendo construído no antigo piscinão, mas que ninguém sabe quando vai ficar pronto”, pontua.
De acordo com o analista, ele também já foi vítima de imprudência no trânsito enquanto treinava.
Tenho até um boletim de ocorrência por conta de um motorista que usava a ciclofaixa como ponto de embarque e desembarque de aplicativo. Ele jogou o carro em cima de mim, praticando direção perigosa”, relata
'Sensação é de insegurança'
O professor de Educação Física Rafael Vianna, de 45 anos, comanda uma assessoria esportiva em Niterói há quase 15 anos e também percebe a desigualdade entre os percursos. Ele corre há mais de 25 anos e acompanha de perto a realidade dos atletas da região.
“No Rio, vamos muito para a Lagoa e para a Vista Chinesa. Em Niterói, treinamos em lugares como Icaraí, São Francisco, Charitas, Jurujuba, Camboinhas, Piratininga, Itacoatiara, Parque da Cidade, entre outras”, enumera.

Rafinha, como é conhecido, também atende alunos de São Gonçalo, mas ressalta que a rotina dificulta os treinos, o que já mostra a realidade de cada um.
“Atendemos moradores de São Gonçalo, mas geralmente só aos sábados. Durante a semana, a maioria trabalha e o deslocamento fica muito apertado”, explica.
Já vemos isso com os ciclistas. Acidente é constante. A sensação é de insegurança, seja por risco de assalto ou por causa dos veículos passando perto. Na BR, tem muito carro e ônibus invadindo o acostamento e desrespeitando as leis de trânsito
Além da insegurança, ele destaca como isso impacta o desempenho de quem treina em alto nível. “Se for um atleta de performance, ele não consegue se concentrar no treino proposto. Há muitos fatores externos atrapalhando”, completa.
Atualmente, Ygor consegue fazer seus treinos com mais segurança no entorno do Maracanã, na Zona Norte do Rio, já que estuda na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ele relata que a estrutura no local é totalmente diferente da que existe em São Gonçalo.
“Antes da aula, consigo correr ali sem dividir espaço com carros, e tem policiamento em todos os pontos. Mas sei que nem todo mundo tem essa possibilidade", disse o analista.
Não vemos relatos de atropelamentos de corredores no Maracanã, na Lagoa ou no Aterro do Flamengo. Só que nem todos têm condições de morar em uma área nobre
Apesar de um parque esportivo estar sendo construído no local onde funcionava o antigo piscinão de São Gonçalo, os corredores ainda não sabem quando o espaço estará liberado para o uso.
“Aqui em Niterói, por exemplo, temos a Concha Acústica, que oferece uma pista de corrida e caminhada excelente, com iluminação e segurança. Lá em São Gonçalo, não sei quando o parque vai ficar pronto e nem quem vai poder usar”, comenta Rafael.
De acordo com o Governo do Estado, a previsão de entrega do Parque RJ é o segundo semestre deste ano.
Dados revelam riscos na rodovia

Responsável pela administração da BR-101 Norte (entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo), a concessionária Arteris Fluminense informou que, embora os dados não especifiquem diretamente a condição das vítimas (se eram corredores ou ciclistas), o número de atropelamentos e mortes foi alto entre janeiro e março deste ano e no mesmo período do ano passado: 28 e 20 respectivamente, com cinco mortes nos dois trimestres.
A Arteris esclareceu ainda que boa parte dos atropelamentos aconteceu em acostamentos — locais comumente utilizados para atividades físicas. Por isso, reforçou que, mesmo quando o uso não puder ser evitado, os usuários devem seguir uma série de medidas de segurança.
Acidentes por atropelamento:
- Janeiro de 2024: 6
- Fevereiro de 2024: 11
- Março de 2024: 11
- Janeiro de 2025: 6
- Fevereiro de 2025: 8
- Março de 2025: 6
Atropelamentos com morte:
- Janeiro de 2024: 1
- Fevereiro de 2024: 2
- Março de 2024: 2
- Janeiro de 2025: 1
- Fevereiro de 2025: 2
- Março de 2025: 2
Dicas para quem precisa usar o acostamento
- Use roupas claras e com elementos refletivos, principalmente em horários de pouca luz.
- Mantenha-se à esquerda do acostamento, de frente para o tráfego.
- Evite fones de ouvido para não comprometer a percepção do ambiente.
- Em treinos em grupo, ande ou corra sempre em fila única.
- Nunca atravesse a pista em locais com baixa visibilidade.
- Para ciclistas: use capacete, sinalização noturna (luz dianteira e traseira) e mantenha-se à direita da pista ou no acostamento, quando houver.
O que diz o Código de Trânsito Brasileiro
De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, os ciclistas devem circular, quando não houver ciclovia, ciclofaixa ou acostamento, no bordo da pista de rolamento e no mesmo sentido dos veículos, conforme estabelece o artigo 58.
Já os pedestres, incluindo os corredores, devem transitar pelos bordos da pista, em fila única e em sentido contrário ao dos veículos, nos locais em que não há calçada, como previsto no artigo 69.
Embora o CTB não mencione expressamente a categoria dos corredores ou atletas, entende-se que estes são equiparados aos pedestres, podendo utilizar o acostamento desde que sigam os cuidados exigidos.
A concessionária conclui reforçando que, embora a legislação permita o uso do acostamento nessas condições, o espaço ainda representa risco elevado, especialmente em trechos com pouca visibilidade ou tráfego intenso.


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