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Poeta do Rock: morte de Renato Russo completa 25 anos nesta segunda
Renato Manfredini Júnior morreu há exatos 25 anos, completados neste 11 de outubro. Sua obra, no entanto, continua viva e atemporal para aqueles que tanto se identificam com suas letras e reflexões sobre a “tchurma”, termo que ele costumava usar para o grupo de amigos com quem conviveu a adolescência e a juventude; sobre as cidades onde viveu, em especial, a musa Brasília dos anos 70 e 80; sobre o Brasil; e sobre os sentimentos que fazem, de cada um de nós, humanos.
Parte das lembranças e memórias deixadas por Júnior a sua família e pelo Renato “Manfredo” aos amigos foi contada por familiares, amigos, músicos e profissionais que tiveram o privilégio de conhecer, de perto, a pessoa, o artista e a obra de Renato Russo, líder da Legião Urbana.
“Foi uma gravidez e um parto tranquilíssimos, apesar da minha inexperiência. Não tinha a menor ideia de nada sobre isso, motivo pelo qual fiz um curso de pré-natal. E me assustava quando diziam que eu sentiria muita dor e que seria necessário fazer muita força para o bebê nascer. No entanto, bastaram três ou quatro contrações para ele pular fora. Em meio às contrações, eu não parava de rir ao lembrar disso. Foi uma sensação muito boa”, conta dona Carminha ao recordar o marcante 27 de março de 1960.
A mãe do poeta que acabara de nascer diz que seu filho sempre foi “um menino fora de série”, que “não criava caso com nada”, a ponto de sequer precisar de babás ou empregadas. “Era um menino exemplar, excepcional no colégio, alegre, comunicativo e brincalhão, principalmente com os primos e com a irmã”, acrescenta. “E assim foi até entrar no bendito rock”, complementa em tom de brincadeira, uma vez que, até o final da vida, Renato continuava sendo, para a mãe, “o rapaz doce que sempre foi”.
O gosto pela música já se manifestava quando ele tinha seis ou sete meses de idade, ainda dentro do berço onde, entre os brinquedos, havia um pequeno rádio de pilha tocando “as músicas brasileiras de ótima qualidade da Rádio Tupi”.
“Um dia, me deparei com ele em pé, pulando e segurando na grade do berço. Eu fiquei preocupada, mas a cara dele era alegre. Descobri que era por causa da música porque, quando eu tirava o rádio da cama, ele chiava. O rádio foi a melhor babá que podia existir para meu filho”, recorda dona Carminha.
Livros e discos foram objetos muito presentes na vida do Júnior. “O pai [Renato Manfredini] também era intelectual. Aos domingos, ficávamos todos em uma saleta, cada um com um livro na mão. Escutávamos músicas clássicas e músicas americanas que estavam na moda, em uma vitrola baixa daquelas com pé palito”.
Um dia, os Manfredini foram surpreendidos ao verem o Júnior, aos 2 anos, tirando um disco da vitrola e, com todo cuidado, colocando-o certinho na capa correspondente.
“Não tinha nada na capa. Só nome de artista. Em seguida, ele pegou outro disco e o colocou na vitrola. Ficamos muito impressionados porque ele era muito pequenino para fazer aquilo. Dali em diante, sempre que queria ouvir música ele ia lá colocava o que queria. E sempre guardando na capa certa”, detalha dona Carminha.
“Nunca contei isso a ninguém da família porque achava chato esse negócio de historinha bonitinha de filho”, acrescentou.
Aos 5 anos, o pequeno Renato escreveu seu primeiro livro. “Um livrinho com ilustração e índice. Era a história de um príncipe que tinha ido no castelo para um jantar ‘opípero’. Eu me surpreendi porque não conhecia essa palavra. O pai então me explicou que era um ‘jantar grandioso, com muita comida’. Aprendi essa palavra com meu filho”.
Uma outra pessoa que aprendeu muita coisa com o Júnior foi a irmã, Carmen Teresa. “A coisa mais marcante que tenho do meu irmão é o fato de ele gostar de me explicar as coisas. Principalmente a parte cultural: literatura, música, arte, teatro, cinema. Aprendi quase tudo com ele. E também as preocupações que ele tinha com relação à carreira que eu iria escolher. Aquela história do ‘o que você vai ser quando você crescer?’. Ele era muito atento ao que me interessava”, lembra Carmen Teresa que, hoje, é professora de inglês e cantora.
As primeiras lembranças que tem do irmão são de cuidados, proteções e as manifestações de afeto e carinho tanto com ela quanto com a mãe. “Mas ele sempre foi muito generoso com todas as pessoas. Tinha uma empatia fora do comum. Era uma pessoa boa, honesta e muito espiritualizada. Ouvia e seguia a própria consciência como ninguém. Inclusive com relação à música. Ele jamais faria música por dinheiro”.
Essa personalidade “doce” se manifestava também na vida amorosa, principalmente com as namoradas. “Sim, ele namorou muito com mulheres, e sempre de uma forma muito respeitosa”, diz a irmã. Segundo Carmen Teresa, Renato tinha uma predileção por mulheres de personalidade forte, a exemplo da personagem Mônica, da música Eduardo e Mônica, e da personagem cantada na música Ainda é Cedo.
“Ele não se sentia atraído por mulheres submissas ou dependentes, e isso também pode ser percebido na música Submissa, dos tempos de Aborto Elétrico, quando ele usa a palavra ‘submissa’ até em tom depreciativo. As amigas e namoradas dele, em geral, eram mais velhas e inteligentes, já com personalidade e carreira própria”.
Na opinião da irmã, Renato gostava de se relacionar tanto com homens quanto com mulheres. “Meu irmão era, na verdade, bissexual. Essa impressão foi inclusive corroborada pelo psiquiatra dele, de que o Renato queria, até do ponto de vista artístico, levantar a bandeira em favor da liberdade de as pessoas serem o que quiserem ser”.
Um dos grandes amigos do Renato já dos tempos de Manfredo foi o ator e “palhaço muito sério”, integrante do premiadíssimo Circo Teatro Udi Grudi, Marcelo Beré, que atualmente faz pós-doutorado sobre “excêntricos musicais” na Universidade de Londres.
A exemplo da irmã de Renato, Beré diz que Renato levantava bandeiras que estavam à frente de seu tempo. “Renato sempre falava que era pansexual, e que transava com a natureza, com o rio, com homem e mulher ou com tudo que despertasse nele o tesão pela vida e por estar aqui e agora. Nunca tive problema nenhum com as opções que ele fez da vida. Desde que tivesse algum tipo de prazer ou até mesmo romance, eu acho que fazia bem a ele”.
Uma outra bandeira levantada por Renato foi contra alguns movimentos radicais de jovens que começavam a aparecer na capital do país. “O Renato era extremamente antifascista e sempre foi um lutador de causas antifascistas. Teve muitos problemas com skinheads e neonazistas da época. Era uma posição política que ele sempre teve, e uma clareza que quase anteviu o presente do Brasil. Tudo que está acontecendo hoje faz parte das piores previsões dele”, recorda Beré.
Os dois amigos se conheceram por meio da Léo Coimbra, irmã da Nice com quem Beré era casado à época. As duas irmãs foram, com seus respectivos maridos (Fernando Coimbra e Marcelo Beré), fonte de inspiração para a música Eduardo e Mônica.
Sábio, precoce e culto
A amizade entre Manfredo e Beré nasceu em uma noite conturbada. “Eu estava enamorado com uma mulher que estava em meio a um processo de separação. Estava na casa dela, quando o marido entrou e tive de sair quase como um fantasma. Cheguei no bar Adrenalina e encontrei o Renato. Passamos a noite juntos conversando sobre vida, morte e sobre o risco que eu havia acabado de correr. Falamos também sobre sexualidade, música, poesia. Vimos que tínhamos muito a ver. Foi ali que começou uma amizade que durou a vida inteira”.
Beré descreve o Renato como uma pessoa “extremamente gentil quando queria ser”, além de “sábio, precoce e culto”. “Tinha lido muito, tinha muitas referências e uma imaginação extremamente privilegiada, além de uma forma incrível de entregar e articular ideias. Desde o começo, nossa amizade foi regada a muitos papos cabeça e muitas trocas extremamente interessantes”.
Acrilic on Canvas
Esses “papos cabeça” entre Renato e Beré foram inclusive matéria-prima para alguns dos grandes sucessos da Legião Urbana. Em especial, Acrilic on Canvas, a música predileta da irmã de Renato e um dos grandes hits de Dois, o segundo disco da banda.
“Acrilic on Canvas, ele fez logo depois de uma noitada na minha casa. Eu morava no final da Asa Sul, em uma casa que ele adorava frequentar. Ficava mais lá do que na casa dos pais. A gente fazia comida juntos e ficava por ali a noite inteira. Eu pintava muito nessa época, e tinha vários cavaletes. Minha casa era um ateliê”, lembra o multiartista.
“Passamos a noite inteira conversando sobre a história da arte. Falamos de várias obras e de vários assuntos ao longo da noite inteira, com ele me vendo preparar tintas, têmpera e telas.”
Renato então pegou um táxi no meio da noite e saiu. “No dia seguinte, ele me liga e pede que eu ouça o que ele havia escrito. Leu a letra inteira de Acrilic on Canvas. Eu fiquei impressionado. Disse que ele foi fundo e que tinha pego o lado mais poético do nosso papo”, relata Beré.
Tempos depois, Renato mostrou a melodia colocada em cima da letra. “Eu imaginava que seria um rock pesado ou algo mais punk. Ele, pelo contrário, apresentou uma música extremamente melódica. Fiquei super emocionado porque astralmente havia, ali, uma parceria. Ele era uma esponja. Era capaz de absorver o momento e traduzi-lo em música e poesia”.
Processo de composição
A amizade entre os dois possibilitou a Beré conhecer a fundo o processo de composição de Renato Russo. “Ele pagava um preço muito alto para poder frequentar os abismos mais profundos e trazer à luz [o que vivenciava e sentia]”.
"Não tinha medo o tal João de Santo Cristo
Era o que todos diziam quando ele se perdeu. Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu"
Renato era bastante metódico. Um hábito dele era o de carregar, o tempo todo, um caderninho de anotações. “Ele tinha a genialidade de pegar frases que os amigos falavam, ou o que escutava em uma mesa de bar; ou mesmo o que lia em um livro. Eu o vi compondo Pais e Filhos, no Rio de Janeiro. Ele me chamou para o estúdio, que era em Botafogo. Enquanto o Dado [Villa Lobos, guitarrista] e o Marcelo Bonfá [baterista] ensaiavam ritmos e passavam músicas, o Renato, em um balcão, pegava várias páginas picotadas desses caderninhos e fala assim: ‘quer ver como é que eu faço uma música?’ Foi colocando essas frases uma seguida da outra, quase em um processo dadaísta de construção e composição. Assim nasceu Pais e Filhos. Uma coletânea de anotações do dia a dia”.
Ver a dimensão que as músicas e as poesias do amigo iam ganhando era algo que orgulhava Marcelo Beré. Mas a experiência que ele aponta como a mais emocionante ocorreu em uma atividade coletiva no Centro de Ensino Fundamental Caseb, escola onde Beré dava aula. “Os alunos cantaram Faroeste Caboclo, uma música imensa, inteira. Foi uma das experiências mais emocionantes que já tive porque eu ouvi uma das primeiras vezes que essa música foi cantada, na minha casa”, lembra Beré.
“Renato pegou um violão Gianinni vermelho que eu tinha, de criança e que acabou ficando com ele, e disse que fez uma música estilo Bob Dylan, com mais de 15 minutos. Eu disse que ele nunca ia conseguir gravar a música. Ele então sentou no jardim e começou a cantar. Um monte de vizinho foi chegando e sentando na grama. Ao final, todo mundo ficou pirado. Depois, a primeira vez que apresentou essa música em Brasília foi no teatro da Escola Parque. Quando começou a parte final, que vai esquentando, parecia que a escola ia desmoronar, tamanha comoção”.
Primeiro guitarrista
Primeiro guitarrista e fundador da Legião Urbana, Kadu Lambach – ou Eduardo Paraná, como Renato gostava de chamar, também tem muitas memórias com o parceiro musical e amigo.
Ele acaba de lançar o livro Música Urbana: O Início de uma Legião, onde, com a ajuda do jornalista André Molina, fala sobre o período de fundação da banda, além de apresentar composições e textos inéditos de Renato Russo, “guardados há mais de 30 anos em um baú”.
Entre as pérolas do livro, está a letra daquela que foi a primeira música da Legião Urbana, chamada Provençal das Quadras. Música que, segundo Paraná, só teve sua parte instrumental concluída após a morte do amigo.
O lançamento do livro será transmitido nesta segunda (11) do palco do Hard Rock Cafe em Curitiba, via YouTube, Facebook e Instagram @kadulambachoficial, a partir das 19h30.
Instrumentista como poucos, “Paraná” foi citado nos quadrinhos do encarte do álbum Que País É Este como o "grande ídolo dos anos 70" que teria deixado a Legião "para estudar violão clássico em São Paulo” – e que, por isso, deveria ter "problema em casa".
Sobre a saída, Paraná diz que precisava desenvolver sua musicalidade, mas que, naquela época, não encontrava professores em Brasília e que tinha ouvido falar de um “conservatório muito bacana” em Tatuí.
“Saí da banda porque eu queria tocar uma música chamada O Cachorro, um instrumental muito bom que tinha compasso 6/8 que depois virava um 4/4. Realmente não tinha nada a ver com a estética punk. Musicalmente, eu precisava me desenvolver como artista, mas lembro que, logo depois, já em Tatuí, meu pai enviou uma reportagem enorme falando da Legião Urbana. Ali eu senti que a Legião ia explodir para o Brasil inteiro”.
Influências
A Legião, mesmo com seu minimalismo, influenciou a formação do virtuoso Kadu Lambach. “Vi o Renato chegar em um nível tão alto que eu pensei, comigo, que, como instrumentista, eu preciso chegar também em um nível alto, inclusive para justificar minha saída da banda. Achei muito bacana ele ter colocado o sarrafo lá em cima. Essa foi a maior influência na minha vida”, disse à Agência Brasil o músico que já tocou com Belchior, Tunai, Márcio Montarroyos, Arthur Maia, Jane Duboc e Victor Biglione, entre outros. Uma de suas composições, inclusive, foram gravadas pelo ícone do jazz mundial Stanley Clarke.
As primeiras impressões sobre as músicas do Renato, no entanto, passam longe do aspecto técnico que desde cedo atraíam o musicista – o que, segundo ele, não tornou a experiência menos marcante.
“Conheci o Renato na banda Aborto Elétrico, na peça O Último Rango, na 308 sul. Depois, vi uma apresentação no Colégio Marista, onde eu estudava. Fiquei impressionado porque soava como o Sex Pistols da época. Os músicos não tinham técnica, mas tinham uma energia muito forte e equivalente à da banda inglesa. Lembro de ter ficado muito impactado ao ouvir Que País É Este”, recorda Kadu “Paraná” Lambach.
Dias depois, após uma apresentação no projeto Concertos Lago Norte, veio o convite de Renato, para que o ajudasse a formar uma nova banda. “Ele me chamou em um sábado e, na segunda-feira, já estava montando uma agenda de ensaios super profissional. Achei bacana da parte dele. Fizemos praticamente todos os 25 ensaios previstos, fora os ensaios a dois violões. Gravamos todos os ensaios, e ele não perdia uma ideia. Pegava as ideias, ia para casa e já trazia no outro ensaio as músicas prontas. Essa era a velocidade do Renato”.
Cafofo
Maestro, compositor e arranjador, Rênio Quintas também percebeu inquietude em um garoto que, ainda que de forma silenciosa, frequentava o bar Cafofo, do qual era proprietário. O subsolo era um espaço onde, à noite, havia muitas apresentações musicais. “E todas as tardes fazíamos reuniões de comissões temáticas, como resistência à ditadura”, lembra Quintas referindo-se aos núcleos de cinema, música, literatura, jornalismo, poesia e teatro.
“Eu dava aulas de harmonia e de qualquer assunto que fosse do meu conhecimento. Falávamos muito sobre resistência, agitações e manifestações na Universidade de Brasília, já que o local era muito frequentado por estudantes da UnB”, lembra o então coordenador do núcleo de música.
Rênio notava “um rapaz magrelo de uns 17 anos, tímido, que descia quase diariamente, durante dois ou três meses, ficando sentado, observando sem falar nada”. Era o Renato, que um dia disse ser baixista e que “queria fazer música”.
O jovem pediu para ter uma conversa com Rênio após uma das reuniões. Nela, disse ter observado que o espaço não era utilizado aos domingos, e queria saber se poderia tocar ali com uma banda chamada Aborto Elétrico.
“De imediato eu perguntei se não tinha nome melhor para dar. Renato então disse que era para ‘chocar a burguesia’. Aquela timidez desapareceu quando ele começou a defender as coisas em que acreditava. Eu disse que não tinha problema, se ele se comprometesse a não estourar o equipamento”.
Como Rênio não costumava ir ao Cafofo no domingo, encarregou um funcionário para receber a banda e seus convidados. “Quando voltei, o funcionário disse que muita gente foi ao local; que o evento foi muito agitado e muito legal; e que o som era ‘o maior barato e com muita gente tocando junto’. Foi ali que conheci, de fato, o Renato Russo”, disse Rênio.
O sobrenome artístico adotado por Renato dá uma amostra do quão erudito era aquele menino punk que frequentava as mesas de debate do Cafofo e tanto gostava de conversar sobre arte com Marcelo Beré. Trata-se de uma homenagem ao filósofos Bertrand Russell e Jean-Jacques Rousseau, e ao pintor Henri Rousseau.
Rock Brasília
Mergulhado na cena instrumental da cidade, Rênio Quintas ficou alguns anos sem encontrar Renato. Até que um dia, após uma apresentação no Bom Demais – bar brasiliense conhecido por ser celeiro de vários músicos de primeira linha da capital federal, como Cássia Eller, Zélia Duncan e Adriano Faquini –, o musicista foi abordado pelo “garoto da banda punk de nome esquisito”.
“Referindo-se à minha banda, a Artimanha [banda que tinha, entre seus integrantes, Toninho Maya, instrumentista idolatrado por Renato Russo, falecido em fevereiro de 2021 devido à covid 19], ele disse que nós éramos músicos de verdade, e que ele, Renato, usava a música como plataforma para poesias”.
“Notei então uma fila se formando na nossa frente, e pessoas entregando disco para ele autografar. Perguntei o que estava acontecendo, e ele perguntou se eu não sabia que ele estava fazendo sucesso com a Legião Urbana, após o lançamento de um disco”. Na medida em que a conversa ia se estendendo, a fila foi aumentando a ponto de dobrar a esquina.
O rock produzido em Brasília ganhou o país, a ponto de a cidade passar a ser nacionalmente conhecida como “Capital do Rock”, após o estouro, em uma mesma leva, das bandas Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude, que tinha à frente, nas guitarras, o também amigo do Renato, Philippe Seabra. Atualmente, o “rude plebeu” trabalha como produtor musical de trilhas sonoras.
O primeiro contato dele com Renato foi em um show de bandas locais – Aborto Elétrico, Metralhas e Blitz 64 – na lanchonete Foods, localizada na entre quadra 110/111 Sul. “Eu tinha uns 13 anos e esse show foi minha apresentação ao movimento punk. Achava engraçado aquelas figuras descabeladas, as roupas e a música agressiva e embolada. O som era tosco, mas legal porque a mensagem ressoava.”
Brasília
Se a Brasília recém-nascida fosse uma tela em branco prestes a ser assinada por vários artistas, o nome de Renato Russo estaria entre eles. Afinal foi ele, poeta e músico, o responsável por apresentar, ao Brasil, a efervescência de uma cidade recém-criada, na busca por uma identidade que tinha, como característica, tantos pedaços de Brasil trazidos por aqueles que começavam a povoá-la.
Brasília influenciou Renato, que influenciou Brasília. Essa troca de energia é percebida nas temáticas das letras de Renato, nas legiões de novos poetas e artistas que surgiram a partir da cena e, até mesmo, em monumentos e espaços que têm o artista como referência.
O antigo Teatro Galpão, espaço consagrado das artes na cidade, atualmente se chama Espaço Cultural Renato Russo. O nome do artista foi adotado também por sete brinquedotecas localizadas em hospitais públicos da cidade, por meio de uma parceria da ONG Amigos da Vida com o Instituto CNP Brasil.
Além disso, o governo local criou o Rota Brasília Capital do Rock, projeto que colocou 41 placas na cidade, marcando locais que foram referências para a cena roqueira local. O projeto, que tem como curador Philippe Seabra, pode ser visitado também de forma virtual por meio do Google Earth.
“Eu sempre disse ao Renato que nada disso teria acontecido se não fosse Brasília. Claro que se alguém tem o ímpeto artístico, ele vai se manifestar de um jeito ou de outro. Mas por ter sido em Brasília, naquele espaço-tempo, saiu do jeito que saiu, com a força, a verve e a ressonância que teve”, diz o curador e guitarrista da Plebe referindo-se “ao momento e às experiências ímpares” que viveram na adolescência, em uma cidade descrita como “um entreposto burocrático no meio do nada”, com passagens aéreas caríssimas e culturalmente isolada.
O fatídico show no Estádio Mané Garrincha mudou a relação entre a capital federal e Renato Russo, a ponto de fãs revoltados pintarem “Fora Legião” em um muro na frente do prédio onde Renato morava, na 303 Sul, região central da cidade.
Uma série de erros na organização, falhas técnicas e uma polícia que não soube lidar com uma plateia bem maior do que a estimada acabaram por fazer deste show, segundo a irmã do cantor, “uma espécie de Gimme Shelter do Planalto Central”, disse ela, referindo-se ao trágico show da banda Rolling Stones, que resultou no assassinato de um jovem nos EUA, em 1969.
“Não havia, em Brasília, uma cultura de grandes eventos. Sei que meu irmão errou em suas falas também. Enfim, foi um dia desfavorável”, resume Carmen Teresa ao confirmar que, no dia, o irmão “abusou de algumas substâncias”.
Após esse show, em que houve confusão, pessoas se machucaram e o cantar acabou xingando a plateia e deixando o palco, Renato prometeu nunca mais voltar a fazer espetáculos na cidade. E isso acabou realmente ocorrendo.
Álcool e drogas
O integrante da Plebe Rude classifica Renato como “um cara muito bem versado e muito legal, que quase escondia a erudição porque falava com muita gíria”. “Era um cara bacana, mas nunca o vi como Messias, como as pessoas falam. Era um bom amigo. Um amigo fiel e muito engraçado. Mas, como qualquer bêbado, um bêbado chato quando bebia demais. E ele bebia muito”, disse referindo-se a um histórico problema do amigo: o alcoolismo.
Marcelo Beré também se preocupava com a relação do amigo com o álcool. “Ele sempre foi extremamente compulsivo. Era difícil controlar. Passava dos limites sempre. E eu também, então era duplamente complicado, porque tinha, ainda, a questão das drogas”.
A mãe do artista percebia os riscos que o filho corria. “Ele mudou quando começou a usar drogas de forma mais intensa. Chegava tarde, dormia o dia inteiro e acordava mal-humorado. Era outra pessoa. Eu sabia o que estava acontecendo. Recorremos a um psiquiatra, que nos disse que o Renato era um cara inteligente, e que só pararia de fazer uso dessas substâncias caso realmente quisesse. Optamos por não interferir na vida dele e nos limitamos a mostrar as consequências que esse caminho poderia trazer. Mas ele já sabia disso”, lembra dona Carminha.
Filmes e livros
O interesse e a curiosidade por aquele que, para muitos, foi consagrado como mito estimulou a produção de vasto material, em especial livros e filmes. Entre eles, a biografia Renato Russo – O Filho da Revolução, escrito pelo jornalista Carlos Marcelo; O Diário da Turma 1976-1986: A História do Rock de Brasília, de Paulo Marchetti. No cinema, Renê Sampaio, um adolescente na década de 80 e fã do cantor, colocou, na tela, a história de João de Santo Cristo, no filme Faroeste Caboclo. O cineasta está prestes a lançar outro filme inspirado em uma música de Renato Russo: Eduardo e Mônica.
Como milhares de jovens brasileiros da época, Carlos Marcelo foi impactado pela sonoridade da Legião Urbana. “A banda encabeçou um movimento, o que me motivou a dar início aos planos de escrever a biografia do Renato. Eu queria entender um pouco sobre esse personagem que tinha me fascinado na adolescência e que continuava sendo muito marcante para mim e para tantos brasileiros”.
O Filho da Revolução
O livro Renato Russo – O Filho da Revolução entrelaça, segundo o próprio autor, a história do Renato, em Brasília, com a história da cidade e do país. “Como me disse um amigo, a biografia contrabandeia um livro de história porque conta muito sobre a história recente do país. Queria mostrar o crescimento de um jovem brasileiro durante a ditadura militar, e como ele foi influenciado por essa vivência em uma cidade adolescente, sendo que o Renato também era um adolescente. É muito raro ter uma geração de adolescentes tomando conta de uma cidade que também é adolescente”, argumenta.
Esses adolescentes citados por Carlos Marcelo foram também abordados no livro O Diário da Turma, de Paulo Marchetti. O livro apresenta depoimentos de diversos integrantes da cena que tinha, ao centro, o Renato, ainda nos tempos de Manfredo.
Como era também integrante da “tchurma”, Marchetti conviveu com Renato. “Ele sempre falava que um dia a Legião ia terminar, e que ele ia virar escritor. Dizia inclusive que o primeiro livro que ele gostaria de escrever seria sobre a ‘tchurma’, para contar histórias de Brasília”, lembra o escritor que é também diretor de TV.
“Quando o Renato morreu, liguei para alguns integrantes da turma, como o Dinho [vocalista do Capital Inicial], o Bonfá e o André Muller [baixista da Plebe Rude]. Ninguém estava pensando em escrever. Então resolvi escrever, após passar por uma síndrome de pânico que me fez pegar essa missão. Eu achava que o Brasil devia conhecer a história que vai além das bandas famosas”, detalha.
René Sampaio não conheceu pessoalmente Renato Russo. Mas se sente íntimo das obras do artista. “Renato Russo mudou minha vida várias vezes. Quando era moleque, escutando suas músicas, via em cada disco uma mensagem e uma reflexão diferente. Depois, já adulto, fazendo filmes sobre suas músicas. Ele me influenciou pessoalmente e influenciou, também, minha carreira. Mudou o meu rumo para uma grande virada”, diz o diretor de cinema.
Registros fotográficos
Outro que teve a carreira impulsionada pela cena e, em especial, por Renato Russo, foi o fotógrafo Ricardo Junqueira, ou “Bolinha”, como era conhecido na época.
“Após as fotos que fiz para divulgação do primeiro disco da Legião, vi que poderia ganhar dinheiro vivendo de fotografia. No dia seguinte pedi demissão do banco onde trabalhava, porque o que ganhei naquele trabalho era equivalente ao que ganharia em um mês de banco. Só tenho a agradecer à banda, à Fernanda [Vila-Lobos, produtora do primeiro disco] e ao Renato, que me proporcionaram isso”.
Ricardo Junqueira assina, ao lado do também fotógrafo Nick Elmoor, o livro Pós-New Brasília 1981-1989, a Biografia Fotográfica de um Tempo que Não Foi Perdido. Trata-se do maior registro fotográfico já feito das principais bandas brasilienses da época, em especial da Legião Urbana, uma vez que, além de fazer imagens para álbuns, Junqueira foi encarregado de registrar algumas das turnês da banda.
“O fato de estudar publicidade me aproximou do Renato, quando estudava jornalismo. Era bom conversar com ele, que tinha posições muito fortes. Era muito frontal com muita gente. Nunca foi uma pessoa muito simpática ou muito tranquila. Às vezes era até agressivo com algumas pessoas que tinham opinião muito diferente da dele”, lembra o fotógrafo que desde 2012 trabalha em Lisboa.
25 anos sem Renato
As lembranças que Junior (ou Manfredo, para os amigos) deixou àqueles com quem conviveu e o legado artístico de Renato Russo acabam por gerar uma sensação de “equilíbrio distante”, como dizia o artista, e de perda de noção de um tempo que, de fato, não foi perdido.
Após um quarto de século de sua morte, ele continua presente e “vivo” por meio de sua obra. Renato Russo deixa um legado que possibilitará, a várias outras gerações, entender parte do que foi este “nosso próprio tempo”.
Agência Brasil
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