A coragem é feminina
São Gonçalo, uma cidade em que a mulher é vítima de violência
Série do ENFOCO escancara os números e histórias
Segundo município mais populoso do Estado do Rio, São Gonçalo registrou 2.481 casos de violência contra a mulher nos seis primeiros meses deste ano. Nesta série de reportagens do ENFOCO, vítimas contam como buscaram ajuda contra os agressores.
A instrutora de tranças Maria (nome fictício), de 32 anos, sofre há oito anos com um relacionamento abusivo marcado por agressões. O casal, que ficou junto por três anos, teve um menino que já vivenciou algumas cenas de violência sofridas pela própria mãe. De acordo com a vítima, tudo começou há oito anos.
“A partir dos dois anos de casados que começaram as agressões. Foi quando eu engravidei. Ele chegava em casa bêbado, alterado e achava que tinha razão para encostar a mão em mim. Até hoje, eu não sei o motivo dessa agressão. Ele me enforcou, me chutou, me socou e me bateu”, relatou a vítima, bastante emocionada.
Com as agressões, vieram as traições relatadas pelos próprios filhos. Em 2019, já separados, o então companheiro foi até a residência da mãe da instrutora de tranças, onde o filho do casal estava, e levou a criança sem deixar um endereço para localizá-lo.
Segundo a vítima, o agressor alega que a mãe não tem capacidade psicológica e financeira para criar o menino. No entanto, Maria tem outros dois filhos, de outros relacionamentos, sob sua guarda. E, segundo ela, a própria família não a ajudou.
“Fora as agressões do genitor do meu filho, eu sofri agressões na minha família também. No momento em que eu mais precisei, não tive essa base. Fui agredida pela minha irmã e até pela minha mãe. Ela puxou uma faca na frente dos meus filhos. Quando falamos de violência doméstica, vai além da física, falamos também das psicológicas e emocionais. Eu sofri dentro da minha própria casa. Eu fui colocada para fora e não tinha para onde ir. Prenderam meus filhos dentro de casa e não deixaram eu pegar meus filhos”, relatou.
A vítima informou que registrou diferentes boletins de ocorrência contra o homem, mas até o momento sem sucesso. O ex-companheiro até propôs uma guarda compartilhada. No entanto, por causa das agressões já sofridas, a mulher não aceitou. Atualmente, o menino continua sob o cuidado do pai, mesmo depois da insistência da moradora de São Gonçalo.
“Todas as vezes que eu vou no local para retirar o meu filho, eu sou agredida verbalmente. Sou humilhada na frente de todos. Meu filho presenciou uma das cenas. Ele (ex-marido) começou a gritar dizendo que eu era uma péssima mãe e que eu não dava nenhum centavo pro meu filho, que eu não prestava, que eu não valia nada. Eu recebo ameaças por telefone e me sinto acuada sempre quando vou até lá retirar o meu filho”, contou.
Eu sinto medo a todo o momento. Não tem um dia na minha vida que eu não tenha medo. Eu não consigo viver em paz.
Maria atualmente é casada e vive com o marido e outros dois filhos, um de 15 e uma menina de 7 anos. No entanto, ela não desistiu de conseguir a guarda do filho de 11 anos, fruto do relacionamento com o seu agressor. A mulher pretende realizar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para ingressar em um curso de Direito e fazer justiça para outras mulheres vítimas de violência.
Mesmo assim, as agressões geraram traumas. “Eu não consigo sair na rua e sentar em uma pracinha com meu filho porque penso que a qualquer momento o pai dele pode vir atrás de mim e tentar me agredir. Eu não consigo mais ter uma vida normal. Nem eu e meus filhos podemos ter uma vida normal sabendo que ele pode fazer alguma coisa pior”, lamentou.
Eu tenho muito medo de passar por isso tudo de novo.
Além de violência física, há a psicológica e patrimonial
A dependência financeira e psicológica da técnica de enfermagem Ana, de 34 anos, também moradora de São Gonçalo, gerou mais um caso de agressões cometidas pelo ex-marido. A mulher contou que o histórico de ameaças e danos ao patrimônio começou em 2017, quando o casal completou seis anos de casados.
Ambos decidiram que a técnica de enfermagem iria parar de trabalhar para estudar e cuidar da filha do casal, que na época tinha quatro anos. A parte financeira da família seria custeada pelo homem, que havia sido promovido em seu trabalho. Foi aí que a vida de Ana virou de cabeça para baixo.
“A partir dessa dependência financeira que começou a acontecer a violência psicológica. Ele começou a me controlar demais. Ele colocou um sistema de hacker no meu telefone e no meu computador. Eu passei a não ser livre porque ele começou a ter esse controle exagerado. E em um momento, ele passou a ter uma vida de adolescente. Ir para balada, dormir fora de casa, viajar e parar de honrar com os compromissos da família. Parou de pagar as contas, a conta de luz atrasou e eu não trabalhava. E ele, que era o detentor do dinheiro e viajava, voltava dias depois. Eu não sabia onde ele estava e eu não tinha dinheiro para pagar as contas. Isso durou oito meses”, contou.
Em um final de semana, Ana, junto com sua filha, resolveu visitar uma amiga. Por não encontrar a esposa em casa, o homem começou a ligar incessantemente e a ameaçar. Com medo, a técnica de enfermagem prestou queixa em uma delegacia antes de voltar para a casa. Ao chegar, uma surpresa:
Eu voltei pra casa e minhas roupas estavam no quintal pegando fogo.
Como um ciclo, o agressor pediu desculpas e comprou novas roupas para a mulher. Cerca de um mês depois, uma intimação contendo uma medida protetiva chegou no trabalho do homem. O motivo? A ocorrência registrada por ameaça. Ele ficou proibido de se aproximar de sua esposa. Ana relata que o seu ex-marido pegou um caminhão, aproveitando que ela não estava em casa, e tirou todos os móveis. A residência ficou vazia.
A técnica de enfermagem conseguiu se recompor com algumas doações que amigos e a igreja em que frequentava realizaram. Em um belo dia, a filha do casal não voltou da escola por meio de transporte particular. O pai tinha a buscado no colégio sem avisar. Ana comunicou o fato à Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) e recebeu a informação que o ex-marido tinha registrado uma ocorrência contra ela, a acusando de maus-tratos perante a filha do casal.
“Na mesma noite, o meu ex-marido trouxe minha filha e devolveu. Ele falou que, como eu tinha acusado ele de ameaça, ele tinha que me acusar de alguma coisa. Se eu retirasse a queixa e a medida protetiva, ele iria até a delegacia e ia assumir que inventou e retirar a queixa”, explicou.
E assim foi feito. As queixas foram retiradas e o homem respondeu pelo crime de falsa comunicação. A vida voltou ao normal até que o ciclo de ameaças e controle psicológico começou novamente. Em 2019, o homem trocou a fechadura da residência, e Ana não conseguiu entrar na própria casa. Dependente financeira, a mulher foi para um abrigo municipal junto com a sua filha.
O homem entrou com um pedido de divórcio e pediu a guarda unilateral, alegando que a esposa não tinha condições de cuidar da filha porque não tinha casa e nem trabalhava. Contudo, devido às ocorrências registradas contra ele, não conseguiu. A criança continuava no abrigo junto com a mãe.
Eu me vi sem perspectiva no abrigo. Só podia ficar um ano. Eu fiquei desesperada. Eu ia pra onde e viver de que?
Com medo de não ter para onde ir, Ana ficou sem opção e decidiu aceitar ajuda do seu ex-marido, que tinha proposto o aluguel de um apartamento para ela ficar e o pagamento de uma creche para a filha.
“Eu me senti encurralada para me reconciliar com ele. Como essa era a única opção que eu tinha, aceitei. Como ainda não tinha mobiliado o apartamento, voltei para a minha antiga casa com meu ex-marido.”
Coagida para encerrar o processo de pensão e guarda, Ana aceitou casar novamente com o rapaz, mesmo com o homem mantendo outro relacionamento. Em 2021, a técnica de enfermagem deu entrada no processo de divórcio, mas o caos causado pela dependência financeira ainda a assusta.
“Ele vem quase diariamente visitar a filha. Ou seja, não tenho uma vida livre como uma mulher solteira ou divorciada. Mas é aceitar isso ou viver no desamparo. Estou cursando a graduação e com expectativas de depois de formada ter total autonomia financeira para uma vida mais livre”, completou.
No último domingo (7), a Lei Maria da Penha, uma forma de proteção para quem sofre qualquer tipo de agressão, completou 16 anos. Com a lei, há mecanismos mais poderosos para os agressores cumprirem suas penas. É neste cenário que inauguramos essa série de reportagens.
Nesta terça-feira (9), leia a reportagem sobre a violência contra as mulheres em números no município de São Gonçalo.
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