Polícia
Complexo do Salgueiro: a prática do extermínio que não vale a pena
Moradias precárias, ruas sem pavimentação e miséria. A ausência do poder público coloca parte da população de São Gonçalo abandonada à própria sorte. Longe das casas e apartamentos do asfalto, moradores do Complexo do Salgueiro vivem a realidade de tiroteios constantes. Apontada como uma das principais comunidades do estado do Rio de Janeiro, a comunidade se tornou reduto, nos últimos anos, de uma guerra armada entre as forças de segurança do estado e traficantes. Uma batalha sem vencedores, mas com muitas derrotas.
As últimas marcas da violência que assolam o conjunto de favelas aconteceram no último final de semana, a partir da morte de um sargento da Polícia Militar, que no dia seguinte resultaria na morte de oito homens em uma área de manguezal, e um acusado de envolvimento na morte do PM, que também foi morto, além de uma idosa, vítima de bala perdida.
Moradores da localidade conhecida como Palmeira, uma das áreas mais precárias da Região Metropolitana, criticaram a ausência de ações do poder público e projetos sociais no conjunto de favelas localizado às margens da BR-101, em São Gonçalo.
“Nós só recebemos a visita do Governo do Estado, através de operações policiais, mas nunca com projetos e ações sociais para retirar jovens do crime e impedir que muitos adolescentes entrem nessa falsa ilusão de uma vida resolvida. Não adianta a bala entrar, é preciso entrar com educação, esporte, lazer e cursos profissionalizantes. Enquanto a única forma de entrada for na bala, vão morrer vários e vários, não somente do tráfico, o que acredito ser o principal problema”
Comerciante e morador há mais de 20 anos no Salgueiro
Falta de investimento e oportunidades geram conflitos
Sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rafael Mello confirma o relato do comerciante ao dizer que é preciso levar oportunidades de capacitação profissional e emprego para os moradores da região.
“Na lógica neoliberal, praticada no Brasil, a área social é um custo e não um investimento. Tanto é que em qualquer política de contenção de gastos ou de ajuste fiscal, as primeiras áreas a serem cortadas são as áreas sociais, como educação, saúde, habitação, saneamento, redistribuição de renda e etc. O que, ao meu ver, é um erro grave. O Ipea já mediu o efeito de gastos sociais, e essa pesquisa revelou que a cada R$ 1 a mais investido pelo governo em despesas sociais gera R$ 1,37 em riquezas para a economia, ou seja, alocar recursos nas áreas sociais não é um custo, mas um investimento. O problema é que a pobreza gera lucro para alguns poucos"
Rafael acredita que para avançar e investir em áreas sociais, 'os governos têm que atuar sobre aqueles que tem mais privilégios e que acumulam mais riquezas, porém a maioria não fará isso, porque, ou eles são esses próprios privilegiados e os que acumulam mais dinheiro, ou, então, são financiados por aqueles'.
Questionada a cerca de investimentos e projetos sociais no Complexo do Salgueiro, o Governo do Estado não prestou qualquer esclarecimento.
Rotina de tiroteio
A violência armada evidente no Complexo do Salgueiro, exemplificada pela na morte do jovem João Pedro Mattos Pinto, em 2019, é ratificada ainda pelo estudo divulgado pela plataforma Fogo Cruzado. Segundo dados divulgados na segunda-feira (22), poucas horas após o surgimento dos oito cadáveres no manguezal, somente neste ano, já foram registrados 42 tiroteios no Complexo do Salgueiro, em média um tiroteio por semana. Nesses confrontos, foram registrados 39 óbitos e 24 feridos. Ou seja, morte por tiro é uma garantida mensal na região.
Embora algumas dessas ações tenham resultado em apreensão de armamentos de guerra e prejuízos para o tráfico de drogas, especialistas discordam que essas sejam as formas corretas de aumentar a sensação de segurança na região.
Segundo o especialista em segurança Pública, José Ricardo Bandeira, o aumento da violência armada no complexo nos últimos anos, pode ser explicada pela migração de traficantes, após a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em comunidades do Rio de Janeiro.
“O Complexo do Salgueiro vem sendo refém de uma migração intensa de traficantes, oriundos de diversas comunidades do Rio de Janeiro que se escondem nos becos e vielas daquela comunidade, que possui uma vasta área de mata, facilitando o esconderijo de soldados e armamentos de guerra. Após a instalação das UPPs, traficantes saíram de diversas regiões do Rio e acabaram se instalando em São Gonçalo. O que precisa é que outros setores da sociedade entrem nessa região é não só a polícia a bordo de um veículo blindado”
Casos são frequentes no Complexo do Salgueiro
Em novembro de 2017, sete homens, em um baile funk, foram mortos durante uma operação conjunta realizada pelo Exército e a Polícia Civil na madrugada do dia 17 de novembro.
A alegação, na época, era que a operação buscava prender dois líderes do tráfico local. Um deles era o traficante Thomas Jayson Vieira Gomes, o 3N, morto dois anos depois, em ação conjunta das polícias Civil e Militar, em Itaboraí, em novembro de 2019.
Na ação de 2017, moradores da região relataram que veículos blindados entraram na comunidade durante a madrugada e houve uma intensa troca de tiros, que acabou na morte de sete homens, três sem qualquer passagem na polícia.
Outra ação aconteceu em agosto deste ano, quando morreram os traficantes Alessandro Luiz Vieira Moura, o 'Vinte Anos', e Rayane Nazareth Cardoso da Silveira, a 'Hello Kitty', além de outros dois criminosos, em Itaoca, uma das áreas mais conflagradas de todo o conjunto de favelas.
Rabicó
Segundo a polícia, o principal acusado de liderar o tráfico de drogas do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, é Antônio Ilario Ferreira, o 'Rabicó', que há mais de duas décadas é responsável por controlar todas as atividades criminosas do bando ligado ao Comando Vermelho (CV). Entre os principais atos ilícitos realizados pelos traficantes, estão o tráfico de drogas, extorsão de comerciantes, cobranças de serviços considerados essenciais, além dos constantes roubos em vias de acesso a localidade, como a BR-101.
Recentemente, a Polícia Civil descobriu que Rabicó passou a agir como miliciano e faturar uma alta quantia mensalmente. O lucro estimado, segundo a polícia, é de R$ 20 milhões, através de diversas cobranças e atividades ilegais. Nos últimos meses, ele avançou sobre áreas de preservação ambiental e construiu loteamentos com o objetivo de aumentar a “caixinha”.
“Já temos uma linha de investigação baseada nesse tema de expansão do lucro desses bandidos e buscaremos a identificação e prisão dos envolvidos nessas práticas ilegais. Já localizamos farmácias que seriam utilizadas de forma ilícita, entre outras atitudes criminosas. Seguimos trabalhando com o intuito de reprimir toda e qualquer ação ilícita na nossa área de investigação”.
Allan Duarte, titular da Delegacia do Mutuá
Questionado a respeito do perigo existente no conjunto de localidades do Complexo do Salgueiro e sobre futuras ações que possam aumentar a sensação de segurança da população naquela região, a Polícia Militar afirmou que 'segue com o policiamento intensificado na região e trabalhando pela manutenção da sensação de segurança dos moradores do complexo de comunidades, assim como para localizar e prender os assassinos do sargento Leandro Rumbelsperger da Silva'.
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) instaurou um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) para investigar as circunstâncias da operação no Complexo do Salgueiro.
Apreensão das armas e preocupação da Defensoria Pública
A Divisão de Homicídios de Niterói, Itaboraí e São Gonçalo (DHNISG), responsável pelo procedimento pericial no local do crime, afirmou, através do delegado Bruno Cleuder, que pediu a listagem dos policiais envolvidos na ação e irá solicitar a apreensão dos armamentos utilizados na operação.
Um dos policiais que teria participado da operação que terminou com nove mortes fez uma publicação nas redes sociais celebrando a "efetividade" da ação e afirmando que houveram mais casos fatais. Segundo ele, foram pelo menos 23 mortos durante os confrontos que perduraram por 48 horas.
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro informou que 'aponta preocupação em não ter havido comunicação imediata por parte da Polícia Militar à Polícia Civil e ao Ministério Público da existência de corpos na comunidade. Além disso, não houve acautelamento do local, fundamental para a realização da perícia'.
Além disso, afirmou que 'é importante ressaltar também que houve descumprimento da decisão liminar da ADPF 635, pois a operação só foi comunicada no sábado à tarde, embora tenha começado de manhã. E, segundo a liminar, a operação precisa ser justificada imediatamente ao MP", conclui.
Perdeu documentos, objetos ou achou e deseja devolver? Clique aqui e participe do grupo do Enfoco no Facebook. Tá tudo lá!