Cidades
Acomodada, eu?
Deparei-me essa semana com uma expressão sensacional, que me foi escrita por uma pessoa muito querida a quem pedi a licença poética de utilizar sua frase. Em um e-mail (sim, eles ainda existem!), essa pessoa, que tem um lugar muito especial no meu coração, me disse:
“Talvez eu esteja, realmente, institucionalizado na minha vida”
E pôs-se a explicar-me o que seria isso. No magnífico filme 'Um Sonho de Liberdade', de 1994, o personagem de Morgan Freeman, prestes a obter a liberdade condicional, após muitos anos de prisão, 'sente-se desconfortável com a ideia de ser livre'. Ele estava 'institucionalizado' naquela circunstância.
Ele prosseguiu, explicando-me que esse conceito serve para várias outras circunstâncias da vida, como por exemplo, estar institucionalizado em uma cidade, em um emprego, em uma relação, e em diversas outras áreas da vida.
Fiquei fascinada com o significado dessa palavra. Porque é como se, propositalmente, abríssemos mão da liberdade, por não querermos lidar com esta e com suas nuances e variáveis. Boicotamos nossa felicidade, em troca da acomodação de um porto seguro. Afinal, ser livre dá muito trabalho...
A partir desse papo, passei a me perguntar por que a maioria das pessoas, de um modo ou de outro, se formata em vidas com horizontes estreitos, sem permitir que o inesperado entre pela janela, iluminando e sacudindo a poeira de tudo que está dentro.
Creio que a resposta está na busca de estabilidade, de conforto e proteção, sentimentos que uma vida previsível nos traz. Mesmo nos piores cenários, nas piores relações, nos piores trabalhos, podemos desfrutar de uma sensação de segurança, a qual nos deixa ilusoriamente confortáveis com a vida que levamos.
Mas, se está confortável, por que mudar? Bem, podemos utilizar a situação abordada pelo filme, para compreender do que se trata a mudança. Evidentemente, para aquele personagem vivido por Morgan Freeman, viver o restante de seus dias em liberdade, seria muito melhor. Haveria a possibilidade de fazer diferente, e até mesmo de fazer o que não foi feito, quando devia ter sido. Por mais que se queira imaginar uma vida viável em um presídio, fica difícil achar que se trata da situação ideal, certo?
Mas para ele, que vivia naquele mundo formatado por esse horizonte estreito, tudo que se encontrava fora do seu universo era muito ameaçador. Porque a ilusão de controle pode nos manter presos até mesmo às piores situações. Controle das relações. Controle dos acontecimentos. Controle dos pensamentos. Controle da rotina estabelecida. Controle dos riscos. Controle dos sonhos (só posso ter isso, me conformo com isso mesmo).
Epicteto foi um filósofo romano adepto do estoicismo. Ele, assim como Sócrates, de quem era seguidor, não deixou nada escrito. Seus ensinamentos somente chegaram a nós, por meio de uma compilação feita por Flavio Arriano, um de seus discípulos, no Encheirídion (palavra cujo significado é manual).
Ao tratar das relações dos homens, com aquilo que podem e o que não podem controlar, Epicteto dizia: “Não são as coisas que inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas”. E esclareceu que, por exemplo, a morte (que não é algo controlável), não é terrível, mas é a opinião que se tem, de que esta é terrível, que faz com que seja temida por todos nós.
Valho-me desse ensinamento para aplica-lo à visão que se tem das mudanças, e do quanto podemos abominá-las. Para os que são muito formatados em suas rotinas, em sua estabilidade, em zonas de conforto, as alterações de curso podem ser amedrontadoras. Perder o porto seguro de todos os dias é ficar à deriva, em determinadas situações.
Mas, se não se controlam os acontecimentos da vida, é preciso preparar-se para a hora em que estes nos chegam, sabendo que, se foi esta a vontade de Deus, deve-se acolhê-los sem reclamar, sem desesperar-se ou se esconder.
A liberdade temida por Morgan Freeman, no filme, é a de ir e vir, de poder conduzir-se livremente, sem estar preso ou escravizado. Mas, a liberdade de que tratamos, nesse artigo, e que precisa ser analisada, é muito mais ampla, e é a que foi chamada, pelos filósofos clássicos, de eleutheria, que é a arte de conduzir-se na sua vida individual, com o bom uso da razão.
A liberdade de decisão, de ação, que comporta também a mudança, a transição para o que nos traz a eudaemonia, que é a plenitude da felicidade, é algo essencial na vida da gente. Somente através da busca dos reais propósitos de nossas existências, podemos sentir essa felicidade.
E o sentido da vida dificilmente reside numa vida “institucionalizada”, formatada e sem riscos, na qual você perde pouco, porque entrega pouco, mas também recebe muito pouco. A realização plena do indivíduo exige força, coragem, doação, serviço, fé e disposição.
Sempre fui audaz. Destemida, voluntariosa, predisposta à mudança. Nunca reclamei das situações que se apresentam. Abraço-as e executo o que me é cabível, entregando nas mãos de Deus o meu destino. Entendo que quase nada na vida é permanente, e que só podemos controlar algumas coisas. As demais, devemos aceitar e fazer destas o melhor possível. Isso me ajudou muito em momentos agudíssimos, os quais provavelmente, paralisariam muitas pessoas, mas a mim, fizeram com que avançasse.
Epicteto dizia que as coisas controláveis da vida são: o juízo, o impulso, o desejo e a repulsa. Sobre todas as demais coisas, ensinava o seguinte: “Retira de ti, então, a repulsa sobre todas as coisas que não estão sob nosso controle (...). Não busques que os acontecimentos aconteçam como queres, mas quer que aconteçam como acontecem, e tua vida terá um curso sereno (...). Lembra que és um ator na peça teatral que o Mestre quiser (...). Pois isso é teu: interpretar belamente o papel que te é dado. Mas cabe a outro escolhê-lo”.
Então, quando a hora de sua 'liberdade condicional' chegar, em qualquer assunto ou aspecto de sua vida, e a mudança se impuser, por mais que você esteja preso a uma realidade que não deseja alterar, por conforto, acomodação ou medo, feche os olhos, faça uma prece e agradeça. Deus nos manda exatamente o que é necessário para nossa evolução, e essa mudança pode ser justamente o que você precisa, para dar sentido à sua vida. Afinal, estamos aqui para isso! Vida é missão, é serviço, é realização, é caminhada!
Desejo a todos uma linda e abençoada jornada!
A niteroiense Erika da Rocha Figueiredo é escritora, promotora de Justiça Criminal, Mestre em Ciências Penais e Criminologia pela UCAM, membro da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais e do MP Pro Sociedade, aluna do Seminário de Filosofia e da Academia da Inteligência. Me siga no Instagram @erikarfig
Texto extraído da Tribuna Diária, publicado em 08/03
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