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Tribunal da Internet decreta Aleta Valente culpada com ameaças
"Estou colecionando ameaças de morte: de ser queimada viva, de ser degolada, de ser cortada por gilete, de me juntarem para arrancar minha língua. Todos vão responder legalmente por seus atos. Já do meu suposto crime, onde estão as provas?"
Aleta Valente, artista visual e ativista
Artista feminista, Aleta Valente responde na internet a acusação de transfobia. O motivo é relacionado a um encontro com uma mulher transexual, durante um evento de artes no Rio de Janeiro. Aleta alega ter sido abordada e ofendida pela mulher, que ela afirma nem conhecer.
Nas redes sociais a artista garante que as acusações são baseadas em boatos, e que nunca houve qualquer prova contra ela.
Tribunal da Internet
Para muito além da vida real, em que a artista relata ter sido ameaçada fisicamente e forçada a deixar o evento, as investidas migraram para o universo virtual, com ataques gratuitos. Ela caracteriza o episódio como misoginia (ódio a mulheres).
"Desta vez a violência aumentou tanto que eles estão indo atrás de pessoas próximas a mim, que eu amo, por estarem comigo"
No dia seguinte ao ocorrido na festa, no início deste mês, Aleta fez uma postagem pela rede social instagram e sofreu mais acusações de transfobia. Ocorre que os comentários não forneceram evidências quando a acusada pergunta o que ela fez de errado.
"Estava há horas no espaço, curtindo, dançando, quando uma mulher trans apareceu me chamando de transfóbica, me intimidando a deixar o espaço. A questão é: não houve conflito anterior, nunca conheci essa pessoa antes, não troquei palavras com ela, muito menos a maltratei. Fui atacada e obrigada a me retirar do espaço sob ameaça à minha integridade física. Saí gritando e dizendo que isso era misoginia, ódio ao sexo feminino, isso que conhecíamos há milênios. O mesmo ódio que queimou mulheres em fogueiras, e que continua queimando"
A identidade da mulher trans que supostamente a agrediu ainda é desconhecida. Mas ainda assim a publicação virtual de Aleta foi o suficiente para sentença final do 'tribunal da internet', que considerou incitamento à transfobia, sob argumento de que não existe violência sistemática contra mulheres por ativistas trans.
Cyberbullying
Em abril deste ano, a Relações Públicas Tamiris Coutinho, de 30 anos, teve que lidar com uma onda de ataques digitais: o cyberbullying, que nada mais é do que o bullying feito no ambiente online.
No caso da moradora de Niterói, a prática de ódio ocorreu a partir da divulgação na internet do próprio Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), intitulado “Cai de Boca no Meu B***tão: Uma análise do funk como potência do empoderamento feminino" — referência à música interpretada por MC Rebecca.
A discordância do tema por parte da sociedade motivou a enxurrada de ataques nas redes sociais. Desde aquele 13 de abril, quando ela disponibilizou o link do artigo no Instagram, já são mais de três mil comentários. O linchamento virtual, com palavras de baixo calão, viraram rotina por lá - e expandiu para o Linkedin e até Facebook.
"Puta e lixo era o que eu mais lia, e ainda tenho que lidar com isso algumas vezes. Não só nos comentários das demais fotos que postava, como nas mensagens diretas [directs, serviço de mensagem privada pelo Instagram]"
Tamiris revela ter sido alvo até mesmo da cólera de críticos e políticos brasileiros.
"Um dos filhos do presidente Bolsonaro criticou o meu trabalho; Olavo de Carvalho também fez cyberbullying comigo, o deputado Anderson Moraes falou que pediria moção de repúdio ao meu TCC. Os perfis dos mais diferentes tipos comentavam. Fizeram corrente em Whatsapp. Fui acusada de usar drogas, umas coisas bem loucas"
Linchamento virtual
A última pesquisa feita e publicada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), pouco antes da pandemia, revela que um em cada três jovens, em 30 países, diz ter sido vítima de bullying online, com um em cada cinco relatando ter desistido do ambiente escolar/acadêmico devido a cyberbullying e violência.
Ao Enfoco a psicóloga da Universidade São Marcos (SP), Larissa Toledo, explica como funciona o processo de ataques. Ela diz que os pacientes vítimas do linchamento virtual estão na faixa etária dos 15 até 25 anos, em sua maioria.
"Uma sensação que é descrita como se a pessoa estivesse sendo linchada, apanhando fisicamente. Mas são dores emocionais, psíquicas. Geralmente, depois acaba acontecendo o estresse pós-traumático, porque essas dores psíquicas geram um trauma mesmo na pessoa"
De acordo com a pesquisa, geralmente os ataques gratuitos vêm de perfis e números telefônicos falsos.
"A polícia tem que rastrear depois e descobrir de onde veio esse ataque. É muito complicado. O cyberbullying está ligado a alguns suicídios de jovens. A pessoa não comete o assassinato, mas a vítima comete o suicídio"
Larissa Toledo, psicóloga
Crime
Especialista em mídias sociais Paula Tebbet lembra que há consequências previstas no Código Penal.
"Existe legislação vigente que enquadra o cyberbullying como crime, dependendo do ato praticado. Injúrias raciais, discriminação, compartilhamento de conteúdo íntimo. Tudo é crime. Mesmo escondidos por perfis falsos, quem comete qualquer crime ou agressão no ambiente digital pode e deve ser enquadrado pela lei"
O meio digital reflete os comportamentos do 'mundo real', e a mesma inconsequência que se vê na prática do bullying nas ruas está também nas redes sociais, argumenta Tebbet. Ela lembra que quase que diariamente são relatados casos de cyberbullying que ganham repercussão.
Cancelamento
O jovem Lucas Santos, de 16 anos, filho da cantora de forró Walkyria Santos, tirou a própria vida no início de agosto, após ser alvo de vários comentários homofóbicos contra ele por conta de um vídeo publicado na rede social Tik Tok. Lucas foi encontrado morto no condomínio onde morava com a mãe, no Rio Grande do Norte.
A rapper e ex-BBB Karol Konká enfrentou um forte linchamento virtual durante e após a participação no reality show da TV Globo. Na percepção do público, ela errou com os demais participantes. Através das redes sociais, a artista foi amplamente atacada.
Prevenção
Para Paula Tebbet, não há outro modo de se prevenir que não seja a educação.
"Primeiro, em relação à aceitação das diferenças, com a promoção do convívio cordial entre todas as pessoas. Ensinar e aprender a respeitar o espaço e as liberdades do outro, mesmo na internet é fundamental. Depois, educar quanto às responsabilidades e consequências de qualquer ato discriminatório e prática de bullying. Mostrar bem o dano que isso causa às pessoas e quais são as práticas passíveis de punição"
Paula Tebbet, especialista em mídias
Para acabar com o bullying online e a violência dentro e no entorno das escolas, o UNICEF e seus parceiros estão pedindo ações urgentes de todos os setores para:
- Implementação de políticas para proteger crianças e jovens de cyberbullying e bullying.
- Estabelecimento e equipamento de linhas de apoio nacionais para apoiar crianças e jovens.
- Avanço de padrões e práticas éticas dos provedores de redes sociais, especificamente no que diz respeito a coleta, informação e gerenciamento de dados.
- Coleta de evidências melhores e desagregadas sobre o comportamento online de crianças e jovens para informar políticas e orientações.
- Treinamento para professores e pais para prevenir e responder ao cyberbullying e ao bullying, principalmente para grupos vulneráveis.
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