Erika Figueiredo - Filosofia de Vida
Rotina
Quando eu era mais nova, gostava de dizer que detestava rotina. Associava a repetição de tarefas e hábitos diários à monotonia, a algo enfadonho e cansativo. Dizia sempre que, se pudesse, jamais viveria uma vida formatada. Pus-me a pensar muito sobre isso nesse último mês, em que estive fazendo mudança, e minha rotina ficou de cabeça para baixo.
Senti-me totalmente perdida, sem meus objetos diários, minhas tarefas bem demarcadas, meus horários para atividades e a sensação de pertencimento. Com a casa encaixotada, a sensação de tudo fora do lugar valia para o espaço físico, mas também surtia efeitos dentro da minha cabeça. Afinal, mudar de casa é perder o senso de lar, e precisar recriá-lo em outro local. Isso não acontece de uma hora para outra. E durante o período de adaptação, ficamos sem um porto seguro.
Dizem que, para que algo se torne um hábito, precisa ser repetido por 21 dias. Após esse período, a nossa mente entende que aquilo faz parte da nossa rotina, e não mais rejeita a atividade. Isso funciona para estudos, exercícios físicos, horários de sono e de realização de tarefas, etc.
Mas por que precisamos tanto de hábitos enraizados como rotinas? O homem, desde os primórdios, necessitou disso para sobreviver. A repetição de tarefas, a escolha de horários para realiza-las, baseando-se nos movimentos do sol e nas estações do ano, sempre foram vitais para que conseguisse viver na natureza, desta extraindo recursos para sua subsistência.
Totalmente integrado ao ambiente, era mais fácil que percebesse os perigos, as movimentações do clima, acontecimentos inusitados, e outras ameaças que a vida selvagem trazia, diariamente. Viver era para os fortes, e era preciso que esses homens fizessem uma leitura sábia do universo ao seu redor.
Isso foi fundamental para a perpetuação da Humanidade. Não fosse a capacidade humana de prever perigos e adaptar-se ao ambiente, e não teríamos sobrevivido a tantos acontecimentos naturais e climáticos. Daí extraiu-se a noção de rotina, como uma repetição necessária de hábitos, com dois objetivos precípuos: aperfeiçoamento destes e proteção dos indivíduos.
Até meados do século vinte, pessoas sem rotina e com uma vida baseada na imprevisibilidade eram mal vistas, tidas como inconstantes, frívolas e não confiáveis. Afinal, a Humanidade veio, por milênios, aperfeiçoando hábitos e comportamentos, e os semelhantes sempre se reconheceram desse modo. Pessoas errantes eram automaticamente tidas como perigosas ao convívio em uma comunidade.
Eis que chegam os anos 60 do século XX, e a contracultura, o movimento hippie e os grupos ideológicos baseados em utopias irrealizáveis entram em cena, pregando que o importante é viver o momento e ser feliz, e que fossem às favas a sociedade organizada, os hábitos e afazeres diários, e carpe diem (aproveite o dia) para lá e para cá.
Acontece que, para que possamos desenvolver um senso de responsabilidade e de proteção própria e dos que amamos, a rotina é essencial. Sem esta, o senso de dever se esvai, porque não identificamos a importância de nossas tarefas diárias para a manutenção do nosso entorno, seja este a nossa família ou nosso grupo de trabalho.
Esse pertencimento que nos vem com a repetição dos hábitos está gravado nos seres humanos, desde os primórdios, e sem isso, não há como como inserir-se na vida real. Daí percebermos, na modernidade, tantas pessoas perdidas, frustradas e sem identidade: pessoas que negam a realidade ao seu redor o tempo todo, vivendo de sonhos e fantasias que não se realizam, não conseguindo mergulhar nas circunstâncias de suas próprias vidas.
O homem moderno é incentivado a ser livre, viver o momento, praticar o hedonismo, levando uma vida de prazeres o tempo todo. Sem limites. Sem responsabilidades. Isso, ao invés de trazer-lhe liberdade, gera angústia e frustração, porque o sentido da vida está, justamente, em praticar hábitos e exercitar virtudes que levem-no a um sentimento de felicidade, em relação à própria existência.
Ao tentar remover de seu dia a dia os hábitos e atitudes diários, que lhe fazem sentir-se importante para aqueles que ama, e capaz de ajudar o seu entorno, o tédio e a apatia tomam conta de sua vida, levando-o à busca de cada vez mais excessos e fugas, a fim de encontrar o prazer. Mal sabe esse indivíduo, que o prazer reside nas coisas mais simples, e na sensação insubstituível de ser útil e realizar sua vocação, junto às pessoas mais próximas.
A nossa potência vem da rotina. Esta faz com que compreendamos a famosa frase de Ortega y Garcez, “eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”. O que o escritor quis dizer? Simples. Ele quis mostrar que, o importante na vida de cada um, é aceitar plenamente as circunstâncias em que está inserido, e viver conforme o que lhe é possível, sem sonhos irrealizáveis e desejos fenomenais, os quais apenas lhe trarão sofrimento e dor.
Uma vez que o homem entenda o que se passa consigo, e com os seus, e abrace a própria realidade, desta extraindo o melhor possível, valorizando e comemorando cada vitória, sua chance de realizar-se e encontrar o propósito de sua existência aumentará exponencialmente.
E por isso a rotina é um pequeno tesouro, que temos e não nos damos conta, uma sucessão de pequenos hábitos a serem vividos com intensidade, pequenos milagres do dia a dia, os quais são essenciais para o bem viver, o senso de pertencimento a uma realidade, a tomada de responsabilidades e a possibilidade de exercitar uma presença plena, no que quer que se tenha que realizar.
Por isso o último mês foi caótico para mim, e estou recuperando os atos de minha rotina com gratidão a Deus e alegria, agora que estou com a casa montada e as coisas em seus devidos lugares. Vai demorar uns dias até que eu me adapte às mudanças e novidades.
Nos últimos trinta dias, meus horários estiveram confusos e minha vida, desorganizada. Mas posso reassumir as tarefas do meu dia a dia e realizar minha missão aqui na Terra, com amor e responsabilidade, feliz por saber que é essa repetição de hábitos que me dá o senso de pertencimento a algo maior, e a liberdade de ser quem eu sou.
A niteroiense Erika da Rocha Figueiredo é escritora, promotora de Justiça Criminal, Mestre em Ciências Penais e Criminologia pela UCAM, membro da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais e do MP Pro Sociedade, aluna do Seminário de Filosofia e da Academia da Inteligência. Me siga no Instagram @erikarfig.
Texto extraído da Tribuna diária
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