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    Erika Figueiredo - Filosofia de Vida

    Os Cegos do Castelo

    Publicado 16/09/2021 às 18:43 | Autor: Erika Figueiredo
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    Imagem ilustrativa da imagem Os Cegos do Castelo
    A cegueira, na modernidade, é a regra. Enxergar é a exceção. Enxergar fora do espectro do que se nos apresenta. Enxergar fora das ideologias. Pensar fora da caixa. Foto: internet

    A segunda temporada de SEE começou, na Apple TV. Na primeira temporada, é delineado um mundo pós-apocaliptico, no qual as pessoas perderam o dom da visão. Os poucos que enxergam são chamados de bruxos, e por isso tentam permanecer ocultos, fingindo-se de cegos, a fim de sobreviverem.  

    Nessa nova temporada, os chamados videntes estão presos, alguns deles nos castelos dos homens e mulheres que governam o mundo. Qual é o maior temor dessa época? É que as pessoas, uma vez que enxerguem, não mais acreditem nas narrativas que lhes são apresentadas, mas no que seus olhos passaram a ver. 

    A rainha é uma mulher cruel e manipuladora, cuja irmã fugiu do reino, a fim de viver uma vida mais simples e verdadeira, ao lado do homem que ama. Os diversos lordes e generais que buscam destituir a rainha mentem, traem e seguem ocultando livros como tesouros, os quais podem ser o passaporte para uma nova forma de viver e interpretar as coisas, caso sejam encontrados.  

    Aparência não importa- afinal, ninguém pode ver. Força física e personalidade, essas sim dominam a cena, deixando claro que os mais fortes sobrevivem. Isso me fez refletir bastante sobre a importância da vida intelectual.  

    Esta consiste não em isolar-se para estudar ou produzir, fechado num mundo próprio de conhecimento e questionamentos. Ter vida intelectual é, de fato, adotar o que você assimilou, por meio do estudo, em sua vida prática, e assim, viver melhor. É a conquista da maturidade, o aperfeiçoamento da sua personalidade.  

    Conhecimento é poder, na medida que você pode transformar a sua percepção do que te cerca, mudar suas atitudes e tomar decisões mais acertadas, baseadas no que você pensa, e não no que te dizem, ou no que todos fazem: você deixa de seguir a multidão, para seguir a sua voz interior. E isso, em um mundo cada vez mais dominado por ideologias e coletivos, é muito perigoso! 

    Por esse motivo, os cegos do castelo da série SEE matam, aprisionam, perseguem e escravizam os videntes. Porque estes podem, por meio da visão, extrair elementos da realidade, ter maior percepção dos fatos, apreender com a experiência e com a leitura, muito mais do que os demais mortais, o que os torna ameaçadores demais para a coletividade.  

    Na escuridão, ou pratica-se o relativismo – cada qual com a sua verdade, moldando a realidade por sua própria mente, ou o movimento de massa – seguir o líder, em um mimetismo muito similar ao da cegueira intelectual que vemos nos dias de hoje: as pessoas são niveladas pelo menor critério educacional, tendo pouquíssimo ou nenhum acesso a cultura de qualidade, a fim de que não aprendam a pensar. Desse modo, tornam-se mais facilmente conduzidas e manipuladas.  

    O homem maduro, em contrapartida, não nivela sua inteligência pelo que lhe é inferior: ele busca elevar-se, e elevar aqueles que estão em seu entorno, não se deixando conduzir por discursos retóricos e vazios. A partir dessa postura, torna-se ameaçador.  

    A.D. Sertillanges, em seu livro A Vida Intelectual, divide a busca do amadurecimento da personalidade em três frentes: a descoberta da vocação, a organização da vida cotidiana e o trabalho. É muito importante perceber que a busca por uma vida mais ordenada começa na organização do seu ambiente íntimo, interno, e do seu ambiente doméstico.  

    O intelectual precisa viver o que prega, ser como aquele que diz admirar, ou ao menos viver nessa busca. De nada adianta desejar a vida intelectual. sem organizar-se minimamente por dentro e por fora. É como diz Jordan Peterson, famoso psicólogo canadense: “antes de querer mudar o mundo, arrume o seu próprio quarto”. 

    Às fls 55 de seu “A Vida Intelectual, Sertillanges diz: “Para que tudo em você esteja orientado para o trabalho, não basta organizar-se interiormente, definir sua vocação e administrar suas forças: é preciso também ordenar sua vida, e penso aqui no quadro em que ela se desenvolve, nas suas obrigações, nas suas vizinhanças, no seu cenário”. 

    E prossegue: ”Reduza sua vida social. Recepções, saídas que implicam novas obrigações, cerimônias com os vizinhos, todo o complicado ritual de uma vida artificial que tantos mundanos maldizem em segredo, não são coisas adequadas para um trabalhador. A vida mundana é fatal para a ciência. A ideia e a ostentação, a ideia e a dissipação são inimigas mortais. Quando pensamos em um gênio, não o imaginamos num jantar” – página 66. 

    Segue ensinando: “ Não se deixe arrastar por essa engrenagem que dissipa pouco a pouco o tempo, as preocupações, as disponibilidades, as forças. Os preconceitos não são os seus comandantes. Seja você mesmo o seu próprio guia: obedeça às suas convicções, não a rituais. As convicções de um intelectual devem referir-se ao seu objetivo”. Fls 66. 

    Por tudo isso, posso dizer-lhes que a cegueira, na modernidade, é a regra. Enxergar é a exceção. Enxergar fora do espectro do que se nos apresenta. Enxergar fora das ideologias. Pensar fora da caixa. Perceber a manipulação da mídia e dos movimentos de massa. Tudo isso custa um preço alto. Mas é muito gratificante a liberdade que se atinge, com a autonomia do pensar e do agir. 

    No prefácio do livro supramencionado, Olavo de Carvalho presta um emocionado depoimento: “É até difícil, para mim, explicar a influência que esse livro teve na minha vida. O mínimo que posso dizer é que ele decidiu o curso da minha vocação”.  

    O professor avança: “Ao lê-lo, já nem lembro quantas décadas atrás, percebi, com horror, que os princípios mas básicos e incontornáveis da vida intelectual haviam desaparecido completamente da consciência nacional, ocasionando a usurpação de praticamente todos os postos da alta cultura e da educação por charlatães, tagarelas e carreiristas desprezíveis, que nada tinham a oferecer às jovens gerações senão uma caricatura horrenda da inteligência, da ciência e das artes”.  

    Sertillanges, às fls 142 de seu livro exalta personagens memoráveis da civilização: “talvez não seja verdade que os grandes homens refletem somente seu século; mas é verdade que eles refletem a humanidade, e todo membro dessa humanidade tem neles sua parte de glória”.  

    Não seja cego. Seja um grande homem. Trabalhe. Descubra sua vocação, Abasteça-se de cultura e conhecimento. Não se deixe levar por frivolidades. Não se vitimize. Eleve seu espírito e seu saber. Deixe o castelo para trás, com seus cegos escravizados, e parta em busca do seu mundo interior. Você não se arrependerá.  

    Fecho com um trechinho da música dos Titãs, Os Cegos do Castelo, que dá título à minha coluna de hoje: 

    “Eu não quero mais mentir 

    Usar espinhos que só causam dor.  

    Eu não enxergo mais o inferno que me atraiu 

    Dos cegos do castelo me despeço e vou 

    A pé até encontrar  

    Um caminho, um lugar 

    Pro que eu sou”. 

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