Filme
Os Banshees de Inisherin: filme ou filosofia?
A reflexão sobre o longa que foi indicado ao oscar
Os Banshees de Inisherin, um dos indicados ao Oscar, é um filme que, em verdade, é filosofia transportada para a película. Disponível na plataforma de streaming STAR PLUS, narra a história de dois amigos inseparáveis, que vivem em uma ilha remota da Irlanda, em 1913, até o dia em que um deles resolve romper a amizade. A tradução de banshees é espíritos.
Digo sempre que a amizade verdadeira equipara-se às relações de amor, em intensidade, confiança, intimidade e afeto. Quando uma amizade real e sincera termina, uma parte de nós vai embora também, como a chama de uma vela que se apaga.
SPOILER
Pádraic, vivido por Colin Farrell, é um criador de animais, destes extraindo seu sustento. Alegre, fanfarrão, piadista e de bem com a vida, pensa e reflete pouco, levando tudo com leveza. Vive com sua irmã, Siobáhn (Kerry Condon), desde a morte dos pais, há oito anos. Calm, interpretado por Brendan Gleeson é um homem solitário, culto, erudito. Professor de violino e compositor, tem amor aos livros, à música e ao silêncio, sendo melancólico e compenetrado.
Ao longo dos anos, o inesperado aconteceu: tornaram-se unha e carne, frequentando o único bar da ilha todos os dias, à tarde, juntos. Até que um dia, Calm, em um memento mori - momento em que se toma consciência da morte - deduz que não extrai nada de produtivo e útil dessa amizade, resolvendo romper de vez com Pádraic.
A princípio, o amigo pensa tratar-se de uma brincadeira ou de um aborrecimento passageiro. No entanto, quando se dá conta de que perderá para sempre a presença, a companhia, o suporte, o afeto de Calm, Pádraic se desespera, e começa a praticar atos extremos, tentando reconquistar a relação.
Em muitos momentos, as investidas de Pádraic assemelham-se às tentativas de uma pessoa que não aceita o rompimento, de um namoro ou casamento. Porque o vazio e a solidão , nesse caso, são similares, mesmo. Com aquele alguém dividia-se tudo, até que, em determinando momento, ele entendeu que não valia mais à pena investir na relação.
Calm, entretanto, permanece totalmente decidido a manter-se bem longe do ex-amigo. Evita-o, menospreza-o, aproxima-se de seus desafetos, ignora-o solenemente no bar da ilha... Aquilo que, por tantos anos, foi compartilhado, desde as conversas até as canecas de cerveja irlandesa, é, repentinamente, confiscado da vida de Pádraic, o que deixa-o atordoado, desiludido, sem norte.
A justificativa de Calm é singela: uma vez que tem plena consciência de que só lhe restam uns dez a doze anos de vida, que utilizar esse tempo compondo, tocando, lendo, aprendendo coisas importantes, ao invés de gastá-lo no bar, tomando cerveja e jogando conversa fora, com alguém tão limitado com Pádraic, que só fala de ordenha, cocô de animais, leite de vaca...
O amigo tenta argumentar que a relação de ambos é complementar, e subsistiu por tantos anos, mesmo com tantas nítidas diferenças entre os dois, com base no bem-querer, no apoio mútuo, em características imateriais. Porém, a reação de Calm é violentíssima.
Questão de afeto
Vemos aqui uma oportunidade de debater o tema de meu último artigo: a utilidade das relações. Calm , infelizmente, passa a enxergar seu amigo como alguém inútil e desnecessário, na realização de seu projeto de tornar-se um homem mais culto e deixar um legado. Para ele, Pádraic passa a ser tudo aquilo de que ele quer manter distância, para não desviar-se de seu projeto de vida.
O personagem está convencido de que ser amigo de Pádriac é perder tempo. Contudo, esquece-se que a base das relações está no afeto sincero, e não no que as pessoas podem nos fornecer. Ao julgar o amigo com a própria régua, perde a oportunidade de enxergar que a beleza, ali, está na complementaridade, no fato de cada um possuir características e atitudes que vêm ao encontro das do outro.
A obsessão de Calm pela busca de sentido para sua vida, de modo abrupto e urgente, faz com que ele negue seus sentimentos, tome atitudes dramáticas e extremas, mutilando a si mesmo e destruindo a relação com seu melhor amigo.
De forma figurada, o filme mostra que, toda vez que negamos o que trazemos dentro de nós, o que sentimos, o que percebemos, nos mutilamos. No filme, a mutilação é real. Em nossas vidas, mesmo que esta se dê em sentido figurado, não é menos dolorosa e triste. Quando Calm rejeita todos os anos de companheirismo e amizade, com Pádriac, em busca de novas emoções e conhecimentos, arranca um pedaço de seu próprio coração, pois não deseja mais uma relação verdadeira, mas somente utilitária.
Filosofia
O filme é de uma beleza e uma poesia constrangedoras. A filosofia pula da tela, diretamente para nossa compreensão. Porque filosofia nada mais é do que o amor pelo saber, a busca da verdade, e a verdade também está contida nas emoções.
Quando Pádriac pede, inúmeras vezes, a Calm, que reconsidere, ele é como a voz da consciência, batendo à porta do amigo, tentando trazê-lo de volta à realidade , como que lhe dizendo: “só é possível que você seja feliz e deixe um legado, se for honesto consigo mesmo, coisa que não está fazendo”.
Por fim, a convicção e a crueldade de Calm transtornam Pádriac, fazendo com que todo o amor que nutria pelo amigo, transforme-se em ódio. Afinal, os dois sentimentos são gêmeos, opostos de uma mesma moeda, dependendo do que se alimenta, dentro da cabeça: o anjo ou o demônio.
Não há nada que esteja na realidade, que não tenha estado, antes, nos filmes e na literatura. O nosso imaginário é um espectro aberto, que capta sensações, emoções, possibilidades e ameaças, com muito mais precisão, por estar sem os freios da consciência. Desse modo, a intuição flui e pode criar obras magníficas, como a que inspirou esse filme.
Que possamos aprender com essa triste história de amor.
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